a cegueira e as esmolas

Queria muito começar esse post com fotos do local que estamos pretendendo comprar, mas só vai rolar na segunda-feira, porque não é tão simples assim sair andando pela favela com uma câmera na mão. Minha sorte é Nour (a egípcia) que  tá indo alguns dias, porque ela não tem medo de levar a máquina dela sempre (pra quem não sabe, minha câmera quebrou no primeiro dia da viagem, então tô sempre precisando dos amigos). Sobre a sala nova, não temos muita novidade, porque estamos dependendo basicamente da arrecadação brasileira pra ver se poderemos comprar ou não (até agora temos em torno de R$ 2.500,00, mas não atualizei os valores hoje).

De qualquer forma, fui visitar uma escola vizinha, a ’50 sorrisos’, pra saber melhor como foram os trâmites da compra do terreno deles, e foi engraçado porque quando chegamos lá, a gente parecia criança, impressionados com tudo: eles têm salas separadas, tem sala até pro diretor, têm uma área pros alunos brincarem no recreio, uniformes novos. A gente ficava invejando tudo, se sentindo em  um palacete. Só depois que saímos, enquanto eu desviava dos esgotos antes da porta, foi que eu fui perceber a ironia que era eu estar achando aquilo ali o máximo. O lugar é mais pobre que qualquer coisa que eu já tenha visto no Brasil, mas é tudo uma questão de perspectiva, e eu fiquei sonhando que a Mumo pudesse crescer daquele jeito.

Como eu tava conversando com uma das muitas moradoras da minha casa (tá lotado demais da conta esse lugar), o que acontece é que a gente vai se acostumando com a pobreza, com a sujeira, com tudo. É uma defesa natural, quem não se acostuma foge. Mas o medo dela é que essa cegueira que vai dando na gente vá virando uma insensibilidade com o sofrimento de quem tá ali. Acho que as pessoas que são obrigadas a lidar com a miséria (mesmo que seja do flanelinha que fica na sua janela quando você para no sinal) vão todas se acostumando, e precisam se vigiar pra não se isolarem (psicologicamente) daquilo. É bom quando o esgoto  passa a importar menos que as crianças da escola, mas é um problema sério quando nem o esgoto, nem as crianças importam mais. Que nos tornemos ‘cegos’ para a pobreza, que não nos tornemos ‘cegos’ para os pobres.

Voltar pra Mumo depois disso, de brincar com os alunos da outra escola, foi uma experiência muito interessante, porque ficou tão explícito como as minhas crianças já são especiais, não são mais crianças da favela que me tratam como celebridade, agora eles têm nome, é Louise, Patrick, Mawia, e por aí vai. Não troco a Mumo por nenhuma escola-palacete, não troco meus meninos de uniforme rasgado por ninguém. E já começo a ter saudade deles por antecedência.

Última informação interessante sobre esse dia é que começou o mês do Ramadã, o que significa que os mulçumanos estão jejuando durante o dia todo (só podem se alimentar de noite). Fazem isso pra aprender como se sentem os pobres que não têm o que comer normalmente, a ideia é que eles entendam o sofrimento para que saibam ajudar quem realmente precisa. Depois de passar o dia todo com Nour, com pena dela estar passando fome (apesar dela estar feliz da vida com isso), violei minha regra de não dar nada aos pedintes da rua, e entreguei meu pedaço de bolo pra  uma criança, porque presumi que se eu tivesse sem comer feito minha amiga eu saberia o quão grande era a necessidade daquela garota. (A  regra de não dar nada pra o pessoal da rua é porque eles são zilhares,  não tem como dar moedas pra todo mundo, e mesmo minha comida é bem racionada aqui, então, ou eu me vetava completamente, ou enlouquecia, prefiri manter o foco dos meus esforços onde eu seria realmente útil: na favela).

Image

(centro de Nairobi)

nairobi. matatu

Leave a comment