ser mulher no Cairo

Eu já estou há um tempo aqui no Egito, tenho muita coisa pra falar sobre esse lugar, sobre minha experiência aqui, muita coisa interessante. Mas até agora a inércia foi maior e eu tava guardando tudo pra mim mesma.

O que mudou? Algo mais forte que a minha inércia: minha revolta. Tô sozinha em casa agora, não tenho pra quem gritar minhas mágoas, então resolvi escrever, pra aliviar a raiva, o peso que eu tô sentindo.

Há alguns minutos eu ouvi uma voz masculina no corredor do prédio, e com isso, simples assim, cheguei no meu limite, surtei. A voz que eu escutei me deu medo, não porque representasse um perigo real para a minha pessoa, mas porque foi no final de um dia, um dia seguido de muitos outros dias iguais, em que eu não pude relaxar prestando atenção em todos os homens em minha volta, como eles me olham, cada movimento, o que eles falam (em árabe), todas as suas ações.

1129-OHARRASS-Egypt-Sexual-Harass_full_600

As pessoas estavam preocupadas porque eu vinha pra cá, preocupadas com a revolução, com os protestos, mas isso aqui, pra mim, é o de menos. Eu tava pertinho, pertinho de um protesto ontem (pela segunda vez) e foi de boa, é só saber pra onde você está indo, o que está fazendo, que vai estar seguro. O que me dá medo aqui é algo muito mais simples, é o fato de eu ser mulher. Ser mulher e falar inglês, porque ser estrangeira não ajuda em nada.

Claro que não foi a primeira vez em que pertencer ao sexo feminino afetou a minha vida negativamente… a gente cresce aprendendo aos pouquinhos sobre nossas limitações, sobre não poder brincar na rua aos dez anos (enquanto seu irmão pode), com quatorze descobre que não pode usar tal roupa pra não chamar atenção, com dezoito começam a duvidar que você pode dirigir bem, e por aí vai (eu precisaria de um texto inteiro pra enumerar tudo). Só que o que eu trato aqui é em outro nível, não é algo velado, não é o machismo que se pinta de cuidado, é violência, pura e simples, que se não foi física comigo, é com muitas outras meninas.

Andar na rua sozinha no Cairo é algo que quem pode evita, é sinônimo de tensão, é certeza de ser abordada várias vezes, é ser tratada como um objeto numa vitrine, sem vitrine. No meu primeiro dia sozinha (depois de uma semana no país) eu passei pela mesma rua quatro vezes antes de ter coragem de parar pra comprar comida em algum lugar, porque eu só via homens em todos os recantos, e todos eles pareciam ameaça. Sair do supermercado sabendo que eu ia ter janta foi minha primeira batalha vencida. As mulheres aqui ficam nos carros, nas suas casas, você só vê uma minoria andando por aí. Se for num café de noite (o mais próximo que se vê de um barzinho, onde eles têm shisha, já que por aqui é muito difícil encontrar álcool pra vender) só tem homem, 100%.. se aparecer uma mulher é de fora (tipo eu, mas estrangeiros aqui são cada vez mais raros).

Cairo-678

Se ensina pras mulheres que elas estão seguras em casa, ou talvez se saírem com um homem por perto, estão mais seguras se não estiverem expostas (não posso cogitar colocar uma bermuda ou uma blusa de alça pra ir na esquina), estão mais seguras se restringirem suas vidas pra se protegerem desses rapazes que andam bastante livres por aí. Confesso que várias vezes tive vontade de estar tão coberta quanto as mulçumanas, queria meu véu, queria não chamar atenção. Confesso que dei graças a Deus quando pude mudar pra o vagão destinado apenas ao sexo feminino no metrô, pude respirar tranquila lá. Mas me cobrir, trocar de vagão, ter um amigo por perto, são alívios imediatos que só aumentam a minha raiva. Eu não quero ser protegida por um homem, pelo véu, ou pelo que for, eu quero ser respeitada na minha liberdade, eu quero prestar atenção na paisagem quando eu andar e não nos meus prováveis assediadores.

Sei que essa realidade não é apenas egípcia, por mais que aqui isso seja bem mais acentuado, mas já passei o mesmo constrangimento na minha terra natal, e também no Quênia, sei que praticamente qualquer mulher pode se identificar com esse sentimento. Por isso eu peço que se algum homem ler esse texto e pensar, “nunca fiz nada disso, estou isento de culpa”, imagine que toda vez que você insinuar que eu sou o sexo frágil, você vai me lembrar disso, cada “””inocente””” piada sexista faz a gente reviver todo esse estresse em um segundo.

Não tem graça, machuca, cansa.

Leave a comment